quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A reforma do CPP


O Senado brasileiro encaminha-se para reformar o nosso processo penal, a exemplo do que foi feito na Itália em 1988.

Até então, vigorava na Península o CPP de 1930, cognominado “código de mármore”. Fora editado durante o fascismo e acolhia um procedimento misto, com uma fase inquisitiva e outra contraditória. Naquela, conhecida como de “indagini preliminare”, concentravam-se os atos de natureza coercitiva e investigatória. O Juiz ou o Ministério Público[1] colhia diretamente as provas, sem a participação do imputado, para que fossem evitadas as diligências inúteis e protelatórias. Na fase seguinte, dita de “giudizio”, esses elementos probatórios eram submetidos ao debate das partes, perante outro juiz, em procedimento essencialmente público e oral.

As ideias liberais e a afirmação dos direitos do homem tornaram esse código obsoleto. Além disso, o terrorismo estava contido e a máfia era tratada com leis repressivas especiais. Criaram-se assim as condições políticas favoráveis para a profunda reforma da lei codificada e a concepção de um novo processo penal, muito mais garantista, inspirado no modelo acusatório inglês.

A reforma legislativa italiana acabou com o Juizado de Instrução e retirou poderes do Ministério Público, impedindo-o de emitir ordem de prisão ou mesmo de recolher as provas do processo. O Promotor tornou-se parte, para dar efetividade ao interrogatório cruzado direto, isto é, sem a mediação do juiz (cross-esamination), ao procedimento imediato e abreviado, e ao patteggiamento, o equivalente do bargaining inglês.

Com o novo sistema processual italiano surgiu um novo órgão, o “juiz das investigações preliminares”, a quem foi confiado o controle das ações do órgão de acusação.

Também em 1988 foi apresentado o Código e Modelo de Processo Penal para a Ibero-américa. Nessa época, segundo o testemunho da Ada Pellegrini Grinover, “a esmagadora maioria dos países da América Latina adotava a velha legislação de características marcantemente inquisitivas, com procedimentos escritos e secretos, em que as etapas da investigação, da instrução e da sentença eram confiadas ao mesmo juiz”[2].

Com considerável atraso, portanto, o Senado está esboçando o novo código de processo penal brasileiro, incorporando, como novidade nuclear, a figura do juiz de garantias, a quem compete garantir os direitos fundamentais dos investigados[3].

Desse modo, a incorporação do juiz de garantias ao nosso processo penal está ligada à noção de que, num sistema acusatório aprimorado, o juiz que participa das investigações, ainda que somente decidindo sobre a pertinência de determinada prova, acaba se envolvendo com a reconstrução histórica do fato, podendo formar seu convencimento precocemente, o que não é desejável em respeito à garantia constitucional do contraditório.



[1] Como regra, a instrução preliminar era atribuída ao juiz. O MP, entretanto, conduzia pessoalmente a “investigação sumária” nos seguintes casos: a) flagrante; b) crimes praticados por pessoas presas, detidas ou submetidas a medidas de seguranças; c) quando não era possível o processo ex abrupto (art. 389); d) em casos de confissão, sem necessidade de outros atos de instrução (art. 389); e e) nos casos de “prova evidente” (Carlos Eduardo de Athayde Buono e Antônio Tomás Bentivoglio, A reforma processual penal italiana – reflexos no Brasil, São Paulo, RT, 1991, p. 58).

[2] Juizado de instrução, vantagens e inconvenientes. Exame de alternativas ajustadas à realidade brasileira. In: Seminário Aspectos Penais em 500 anos – Anais. Série Cadernos do CEJ, vol. 18, Brasília, Jul. 2001, p. 27.

[3] Note-se, com Simone Shreiber, que o juiz de garantias não preside a investigação, tal como ocorre nos ordenamentos que acolhem o juiz instrutor. A função do juiz de garantias “não é a de coadjuvar a polícia ou o ministério público na apuração dos fatos ocorridos, mas sim de garantir os direitos das pessoas eventualmente atingidas pela investigação” (O juiz de garantias no projeto de código de processo penal. In: Boletim do IBCCrim, São Paulo, IBCCrim, ano 18, n. 213, p. 2-3, ago. 2010).